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Poemas retirados do livro.

O gondoleiro do amor

Barcarola
Teus olhos são negros, negros,

Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,

Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina

Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,

Ama um canto o pecador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,

Que o horizonte enrubesceu, 
- Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida

Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada

Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,

Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!? ...

Teu amor na treva é - um astro, 

No silêncio uma canção, 
É brisa - nas calmarias, 
É abrigo - no tufão;

Por isso eu te amo, querida,

Quer no prazer, quer na dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.


Durante um temporal

Vai funda a tempestade no infinito,

Ruge o ciclone túmido e feroz...
Uiva a jaula dos tigres da procela
- Eu sonho tua voz -
Cruzam as nuvens refulgentes, negras,
Na mão do vento em desgrenhados elos...
Eu vejo sobre a seda do corpete 
Teus lúbricos cabelos ...
Do relâmpago a luz rasga até o fundo
Os abismos intérminos do ar...
Eu sondo o firmamento de tua alma,
À luz de teu olhar ...
Sobre o peito das vagas arquejantes
Borrifa a espuma em ósculos o espaço...
Eu - penso ver arfando, alvinitentes,
As rendas no regaço.
A terra treme... As folhas descaídas
Rangem ao choque rijo do granizo
Como acalenta um coração aflito,
Como é bom teu sorriso,....
Que importa o vendaval, a noite, os euros, 
Os trovões predizendo o cataclismo...
Se em ti pensando some-se o universo 
E em ti somente eu cismo...
Tu és a minha vida ... o ar que aspiro ...
Não há tormentas quando estás em calma. 
Para mim só há raios em teus olhos,
Procelas em tua alma!


Adormecida

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia

Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste

Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,

Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos

- beijá-la. Era um quadro celeste!...
A cada afago

Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante

Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...

Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia

Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."


Vozes d'África

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 

Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito, 

Que embalde desde então corre o infinito... 
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia 

Do deserto na rubra penedia 
- Infinito: galé! ...

Por abutre - me deste o sol candente, 

E a terra de Suez - foi a corrente 
Que me ligaste ao pé... 
O cavalo estafado do Beduíno 
Sob a vergasta tomba ressupino 
E morre no areal.

Minha garupa sangra, a dor poreja, 

Quando o chicote do simoun dardeja 
O teu braço eternal. 
Minhas irmãs são belas, são ditosas... 
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 
Dos haréns do Sultão.

Ou no dorso dos brancos elefantes 

Embala-se coberta de brilhantes 
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia... 

Ganges amoroso beija a praia 
Coberta de corais ... 
A brisa de Misora o céu inflama;

E ela dorme nos templos do Deus Brama, 

- Pagodes colossais... 
A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ... 
A mulher deslumbrante e caprichosa, 
Rainha e cortesã.

Artista - corta o mármor de Carrara; 

Poetisa - tange os hinos de Ferrara, 
No glorioso afã! ... 
Sempre a láurea lhe cabe no litígio... 
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio 
Enflora-lhe a cerviz. 
Universo após ela - doudo amante 
Segue cativo o passo delirante 
Da grande meretriz.



Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 
Em meio das areias esgarrada, 
Perdida marcho em vão! 
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente! 
Não descubras no chão... 
E nem tenho uma sombra de floresta... 
Para cobrir-me nem um templo resta 
No solo abrasador... 
Quando subo às Pirâmides do Egito 
Embalde aos quatro céus chorando grito:

"Abriga-me, Senhor!..."
Como o profeta em cinza a fronte envolve, 

Velo a cabeça no areal que volve 
O siroco feroz... 
Quando eu passo no Saara amortalhada... 
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada 
No seu branco albornoz. . . " 
Nem vêem que o deserto é meu sudário, 
Que o silêncio campeia solitário 
Por sobre o peito meu.

Lá no solo onde o cardo apenas medra 
Boceja a Esfinge colossal de pedra 
Fitando o morno céu. 
De Tebas nas colunas derrocadas 
As cegonhas espiam debruçadas 
O horizonte sem fim ... 
Onde branqueia a caravana errante, 
E o camelo monótono, arquejante 
Que desce de Efraim 


Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! 
É, pois, teu peito eterno, inexaurível 
De vingança e rancor?... 
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime 
Eu cometi jamais que assim me oprime 
Teu gládio vingador?! 



Foi depois do dilúvio... um viadante, 
Negro, sombrio, pálido, arquejante, 
Descia do Arará... 
E eu disse ao peregrino fulminado: 
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...

- Serei tua Eloá. . . "
Desde este dia o vento da desgraça 

Por meus cabelos ululando passa 
O anátema cruel. 
As tribos erram do areal nas vagas, 
E o Nômada faminto corta as plagas 
No rápido corcel. 
Vi a ciência desertar do Egito... 
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição. 
Depois vi minha prole desgraçada 
Pelas garras d'Europa - arrebatada -
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte 

Teu sangue não lavou de minha fronte 
A mancha original. 
Ainda hoje são, por fado adverso, 
Meus filhos - alimária do universo, 
Eu - pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre 

Condor que transformara-se em abutre, 
Ave da escravidão, 
Ela juntou-se às mais... irmã traidora 
Qual de José os vis irmãos outrora 
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço 

Role através dos astros e do espaço 
Perdão p'ra os crimes meus! 
Há dois mil anos eu soluço um grito... 
escuta o brado meu lá no infinito, 
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...


Navio Negreiro 
(TRAGÉDIA NO MAR)



'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço 
Brinca o luar - dourada borboleta; 
E as vagas após ele correm... cansam 
Como turba de infantes inquieta. 



'Stamos em pleno mar... Do firmamento 
Os astros saltam como espumas de ouro... 
O mar em troca acende as ardentias, 
- Constelações do líquido tesouro... 



'Stamos em pleno mar... Dois infinitos 
Ali se estreitam num abraço insano, 
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... 
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 



'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas 
Ao quente arfar das virações marinhas, 
Veleiro brigue corre à flor dos mares, 
Como roçam na vaga as andorinhas... 



Donde vem? onde vai? Das naus errantes 
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? 
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço. 



Bem feliz quem ali pode nest'hora 
Sentir deste painel a majestade! 
Embaixo - o mar em cima - o firmamento... 
E no mar e no céu - a imensidade! 



Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! 
Que música suave ao longe soa! 
Meu Deus! como é sublime um canto ardente 
Pelas vagas sem fim boiando à toa! 



Homens do mar! ó rudes marinheiros, 
Tostados pelo sol dos quatro mundos! 
Crianças que a procela acalentara 
No berço destes pélagos profundos! 



Esperai! esperai! deixai que eu beba 
Esta selvagem, livre poesia 
Orquestra - é o mar, que ruge pela proa, 
E o vento, que nas cordas assobia... 
.......................................................... 



Por que foges assim, barco ligeiro? 
Por que foges do pávido poeta? 
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira 
Que semelha no mar - doudo cometa! 



Albatroz! Albatroz! águia do oceano, 
Tu que dormes das nuvens entre as gazas, 
Sacode as penas, Leviathan do espaço, 
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II


Que importa do nauta o berço, 
Donde é filho, qual seu lar? 
Ama a cadência do verso 
Que lhe ensina o velho mar! 
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina 
Como golfinho veloz. 
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena 
As vagas que deixa após. 



Do Espanhol as cantilenas 
Requebradas de langor, 
Lembram as moças morenas, 
As andaluzas em flor! 
Da Itália o filho indolente 
Canta Veneza dormente, 
- Terra de amor e traição, 
Ou do golfo no regaço 
Relembra os versos de Tasso, 
Junto às lavas do vulcão! 



O Inglês - marinheiro frio, 
Que ao nascer no mar se achou, 
(Porque a Inglaterra é um navio, 
Que Deus na Mancha ancorou), 
Rijo entoa pátrias glórias, 
Lembrando, orgulhoso, histórias 
De Nelson e de Aboukir... 
O Francês - predestinado - 
Canta os louros do passado 
E os loureiros do porvir! 



Os marinheiros Helenos, 
Que a vaga jônia criou, 
Belos piratas morenos 
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara, 
Vão cantando em noite clara 
Versos que Homero gemeu ... 
Nautas de todas as plagas, 
Vós sabeis achar nas vagas 
As melodias do céu! ... 



III



Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! 
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano 
Como o teu mergulhar no brigue voador! 
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! 
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... 
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 



IV



Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar... 



Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs! 



E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 



Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri! 



No entanto o capitão manda a manobra, 
E após fitando o céu que se desdobra, 
Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!..." 



E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais... 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!... 



V



Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?... 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 



Quem são estes desgraçados 
Que não encontram em vós 
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz? 
Quem são? Se a estrela se cala, 
Se a vaga à pressa resvala 
Como um cúmplice fugaz, 
Perante a noite confusa... 
Dize-o tu, severa Musa, 
Musa libérrima, audaz!... 



São os filhos do deserto, 
Onde a terra esposa a luz. 
Onde vive em campo aberto 
A tribo dos homens nus... 
São os guerreiros ousados 
Que com os tigres mosqueados 
Combatem na solidão. 
Ontem simples, fortes, bravos. 
Hoje míseros escravos, 
Sem luz, sem ar, sem razão... 



São mulheres desgraçadas, 
Como Agar o foi também. 
Que sedentas, alquebradas, 
De longe... bem longe vêm... 
Trazendo com tíbios passos, 
Filhos e algemas nos braços, 
N'alma - lágrimas e fel... 
Como Agar sofrendo tanto, 
Que nem o leite de pranto 
Têm que dar para Ismael. 



Lá nas areias infindas, 
Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana 
Cisma da noite nos véus ... 
... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!... 



Depois, o areal extenso... 
Depois, o oceano de pó. 
Depois no horizonte imenso 
Desertos... desertos só... 
E a fome, o cansaço, a sede... 
Ai! quanto infeliz que cede, 
E cai p'ra não mais s'erguer!... 
Vaga um lugar na cadeia, 
Mas o chacal sobre a areia 
Acha um corpo que roer. 



Ontem a Serra Leoa, 
A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d'amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar...



Ontem plena liberdade, 
A vontade por poder... 
Hoje... cúm'lo de maldade, 
Nem são livres p'ra morrer... 
Prende-os a mesma corrente 
- Férrea, lúgubre serpente - 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Ao som do açoute... Irrisão!... 



Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! ...



VI



Existe um povo que a bandeira empresta 
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... 
E deixa-a transformar-se nessa festa 
Em manto impuro de bacante fria!... 
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, 
Que impudente na gávea tripudia? 
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto 
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 



Auriverde pendão de minha terra, 
Que a brisa do Brasil beija e balança, 
Estandarte que a luz do sol encerra 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu que, da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!... 



Fatalidade atroz que a mente esmaga! 
Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu nas vagas, 
Como um íris no pélago profundo! 
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga 
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! 
Andrada! arranca esse pendão dos ares! 
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

São Paulo, 18 de abril de 1869.